Por Gislene Feiten Haubrich

Hefesto: deus do fogo; deus do trabalho. Filho bastardo de Zeus, gerado pela ira de Hera frente às traições de seu marido. Nasceu feio, fraco e deformado, o que fez com que sua mãe o arremessasse para fora do Olimpo. O destino do deus defeituoso, no entanto, não é catastrófico. Resgatado e criado pelas divindades Tétis e Eurínome, Hefesto, ainda criança, demonstra seus talentos na criação de peças de ourivesaria, manipulando joias sem beleza igual.
O passar dos anos faz o ódio de Hefesto aumentar e a ânsia de vingança passa a orientar seu agir. Faz, então, um trono para presentear sua mãe. Trono o qual ela não poderia mais desvincular-se, já que Hefesto, além de deus do fogo, da marcenaria e da ourivesaria, manifesta seu poder para atar e desatar; capaz de tudo ligar e desligar. Esses poderes garantem a Hefesto seu lugar no Olimpo. Dentre os notáveis trabalhos atribuídos a Hefesto, a mitologia cita os raios de Zeus, o tridente de Poseidon (Netuno), a couraça de Héracles (Hércules), as flechas de Apolo e as fulgurantes armas de Aquiles na Guerra de Tróia.
Fonte: Coleção Deuses da Mitologia e Otto Marques da Silva
A história de Hefesto inspira a reflexão neste dia do trabalho ou dia do trabalhador. Os dramas da vida do “deus defeituoso” assemelham-se às vinculações negativas que acompanham a noção de trabalho desde os mais remotos tempos. Assim como Hefesto fez uso de seus talentos para garantir seu espaço no Olimpo e interveio de forma fundamental às grandes batalhas gregas por meio de seu trabalho, aprendemos a situar nosso trabalho como fonte de ascensão social.
Eu gosto de pensar quantos sentidos estão envolvidos por esta palavra: Trabalho. Seguidamente, convido as pessoas no Instagram @coffeeingwork a definirem trabalho. Alguns dos olhares que já se mostraram por lá foram:
“Uma parte do que sou. O modo como eu trabalho afeta como eu vejo o mundo”. Anônimo
“De forma simplista, é o que me dá $$. De forma filosófica, é o que (deveria) me dar satisfação pessoal”. Poliana
“O trabalho para mim possibilita uma forma singular de expressão do ser humano no mundo”. “Evolução”. Eliane
“Trabalho é o modo como eu canalizo minhas inspirações e pensamentos em ação”. Martina
“Apenas algo que garante minha sobrevivência $, atualmente. Mas deveria ser algo maior”. Maine
Outro dia, a pergunta que apareceu pelos stories foi: “Trabalhar é só ganhar dinheiro” e a resposta “NÃO” teve 100% de adesão. Acompanhada dessa questão, 100% dos participantes da enquete também concordam que sua personalidade mudou a partir do trabalho.
O que a história de Hefesto e essas respostas têm em comum?
Para começar, o percurso. Todos nós, no dia a dia, fazemos múltiplos esforços para garantir a entrega de algum produto relativo ao nosso trabalho. Mas quantas vezes nós pensamos, analisamos processo dessa produção? Quantas vezes nós pensamos nos usos desses produtos gerados por nós? Quantas vezes consideramos as consequências do nosso fazer e a sua interdependência com o contexto?
Em geral, refletir sobre o processo demanda tempo e afastamento: precisamos de um gatilho que “pah”, gere desconforto e dedicação para análise. Por vezes, não conseguimos avançar sozinhos nesse mergulho às nossas experiências, pois escolhemos dar atenção a elas apenas no momento de exaustão. Entretanto, nossa formação é contínua, e por mais que reconheçamos, majoritariamente, o amadurecimento decorrente das topadas no trabalho, precisaríamos realizar pausas frequentes para reconhecer e travar embates às situações que endurecem a nossa casca.
A relação que estabelecemos com o trabalho impacta nossa vida e nossa saúde muito mais do que podemos perceber. Os eventos recentes que derivam da pandemia Covid-19 nos convidam a pensar, pois mobilizaram e colocaram em evidência as múltiplas realidades laborais em nossa sociedade.
Por um lado, os profissionais da saúde, que já enfrentam jornada exaustivas de trabalho no cotidiano, têm agora de ampliar ainda mais a carga horária de atuação, o que os deixa ainda mais vulneráveis. Além da lida com os infectados, cheia de dores, a debilidade física e mental facilita a infecção.
Por outro lado, vários profissionais viram seus empregos desaparecerem diante do fechamento de fábricas, lojas e outras tantas empresas. A falta de emprego associada a ausência de formação ou conhecimento de base, culmina com uma situação de ausência de meios de subsistência.
Existem pessoas que moram nas ruas e, diante de sua exclusão dos sistemas sociais vigentes – seja qual for a origem dessa exclusão -, estão também excluídas da informação de que existe uma pandemia.
Há ainda a realidade privilegiada das pessoas que podem trabalhar de suas casas e manter suas jornadas laborais e de remuneração.
Por certo, existem outras tantas realidades que não cabem em um texto, mas a questão é: o trabalho é inerente a todas. Ou melhor, a percepção e relação estabelecida com o trabalho permeia todas elas. Não podemos simplificar questões complexas como a desigualdade de acesso às tecnologias ou mesmo de recursos básicos para uma vida saudável. Entretanto, podemos exigir, especialmente das realidades privilegiadas, um pouco mais empatia e reflexão em relação ao modo como o trabalho também pode nos levar a alienação.
O que nós podemos fazer?
Agora, em meio ao caos, apenas a solidariedade no sentido de caridade e doação fazem a diferença na vida das pessoas que, por diferentes razões, hoje sequer tem a razão de celebrar o seu trabalho e que, por isso, não estão abertos à reflexão de como trabalho modifica suas personalidades ou seus pontos de vista sobre o mundo. Mas nós, relativos a essa realidade privilegiada, nós deveríamos pensar no depois, pois essa pandemia vai passar. Como nós vamos mudar e lutar por condições mais igualitárias? Até que ponto isso nos interessa?
Que assim como “Hefesto” também nós, trabalhadores, saibamos edificar nossa obra, nosso trabalho, mas que em oposição ao caminho por ele adotado, aprendamos a reconhecer nosso potencial e que ele implique romper com o individualismo a fim de estabelecer vínculos profícuos em prol de uma sociedade mais inclusiva, em que “EU” e o “OUTRO” se engrandeçam mutuamente.
Feliz de nós, que temos trabalho.
Privilegiados somos nós, que conseguimos transformar o mundo por meio de nosso trabalho.