Coffee and Work

Por Gislene Feiten Haubrich

O cenário da pandemia tem impulsionado muita especulação. É pulsante a criação das mais variadas teorias sobre como tudo começou ou onde todos esses eventos ao redor do mundo vão nos levar. A cada dia temos uma nova opinião, pouco fundamentada e muitas vezes jogada ao vento. Dali a um pouco, muitos começam a repetir essa ideia e ela se torna um jargão. Esse é o percurso da expressão mais ouvidas nos últimos meses: “o novo normal”.

Mas o que isso quer dizer? O que é normal? Como ele pode ser novo?

Muitas outras questões ficam pipocando em nossa mente e, com certeza, você já deve ter investido alguns momentos de seus dias em distanciamento físico das rotinas sociais para pensar o que acontecerá nos próximos meses. Bom, essa especulação faz parte do que nos define como humanos e isso é completamente comum, ainda que não possa ser considerado normal. Ficou confuso? Pois, sim, isso é confuso mesmo. É por isso, para avançarmos da opinião para a argumentação, vamos convidar dois senhores para participar de nossa conversa hoje.

 

Vamos começar pelas apresentações. Este senhor simpático aí ao lado é o Doutor Georges Canguilhem. Ele nasceu na França e por lá desenvolveu sua tese de doutorado na área de Medicina. Se você quiser saber mais sobre a vida dele, leia aqui essa biografia disponível no portal El País (em espanhol).

Canguilhem, que além de médico era filósofo, desenvolveu uma compreensão inovadora em relação a noção de doença. Primeiramente, ele destaca que na medicina convencionou-se tratar a doença como algo do mal. Em um segundo momento, ele destaca que para a medicina grega, a doença tinha uma representação de uma perturbação que tem como propósito a intenção de cura. Essa visão dos gregos tinha como base a relação que temos com a natureza, enquanto aquela outra, já tradicional, estava vinculada à técnica médica.

Mas o que Canguilhem quis mostrar com essa oposição de visões de mundo em relação ao que é uma doença? Esse autor inaugurou o entendimento que a doença, na sociedade humana, é, também, uma construção cultural. Nesse momento você deve estar se perguntando: mas como assim? Doença é doença, não tem nada de cultural nisso. Bom, o fato é que sim, como interpretamos o que é doença determina totalmente o modo como vamos lidar com ela. Vamos ver algo que ele afirma em seu livro “O Normal e o Patológico”:

“Essas duas concepções têm, no entanto, um ponto comum: encaram a doença, ou melhor, a experiência de estar doente, como uma situação polêmica, seja uma luta do organismo contra um ser estranho, seja uma luta interna de forças que se confrontam”. (2011, p.11)

O que podemos entender desse ponto? Por um lado, que existe um estado fisiológico de nosso corpo que pode estar saudável ou patológico, doente – o que implica a luta do organismo contra um ser estranho. Por outro lado, o estado normal, que representa um corpo adequado ao meio onde está inserido, refere-se a essa luta de forças interna, que recebe um estímulo externo e precisa lidar com isso, interpretando e adequando essa percepção do estímulo ao seu próprio corpo.

Dito isso, a ideia central defendida por Canguilhem é a de que um ser vivo será considerado normal em relação a determinado meio. Em ambas as concepções de doença refletidas por Canguilhem, existe a ideia de norma, que são a base do que será definido como normal. As normas que regem o sistema fisiológico são distintas daquelas que regem o estado considerado normal. Por exemplo, no caso do Covid-19, a norma fisiológica para muitos indivíduos em contato com o vírus é a apresentação de determinados sintomas e que, por isso, podem precisar de diferentes intervenções para que sejam eliminados e a pessoa possa ser considerada curada. O estado normal, por sua vez, implica o modo como determinamos que é a nossa adaptação a existência do vírus. Esse estado afeta todas as pessoas e não apenas as infectadas. Temos então uma doença – que é parte do meio – que se impõe a todos nós, seres sociais. Existem várias maneiras de adaptação a existência dessa doença, a depender do modo como experimentamos a sua existência.

Usamos a situação do corona vírus, pois é a que está em alta agora, mas a mesma situação é a mesma se tomarmos como exemplo a visão. O estado fisiológico é determinado por uma norma que define como enxergamos as cores e todas as demais coisas que estão ao nosso redor. O estado normal da visão, por sua vez, será determinado pelas normas sociais e coletivas que são base dos nossos valores: eu seleciono o que quero ver e, desse modo, a realidade, o meio que aceito como normal ao meu redor é decorrente dessa seleção.

 

Bom, nesse ponto que convidamos o doutor Louis Durrive, também francês, mas pedagogo e estudioso da filosofia de Canguilhem, que esclarece de modo muito pedagógico essa relação entre a limitação que o meio impõe, de modo direto e frontal, e a norma que é definida como uma convenção de ordem simbólica e, por isso, indireta e sempre mediada por alguém.

Em seu livro, “L’expérience des normes”, Durrive trata intensamente da nossa experiência humana com as normas. Nesse sentido, a primeira questão que vem a mente é: o que nós experimentamos? A resposta é direta: experimentamos o mundo, nas suas mais ínfimas manifestações. Convenhamos que o mundo é algo bastante grande e pouco específico. Cabe então entender, que mundo é esse. Trata-se do meio, aquele que esclarecemos com o Canguilhem agora a pouco. Esse meio não é igual para todos, mas depende do modo como percebemos a realidade, como a interpretamos e, por fim, depreendemos essa pequena parte do que é o real. Mas, como nós experimentamos isso? Todos os momentos de nossa vida, sempre tomamos uma iniciativa em relação àquilo que percebemos em nosso entorno. Quer dizer, nós escolhemos quais pontos dessa realidade vão compor o nosso meio de vida. Importa destacar aqui, que essa iniciativa que temos é uma manifestação de resistência, que nós não somos levados pela maré no nosso dia a dia, e que a adesão ao que se passa em nosso entorno é uma escolha nossa.

Agora, de volta ao princípio do nosso texto, que quer entender o que é esse novo normal, o que podemos depreender?  

Primeiramente, que não podemos tratar a busca por uma vacina ou pelo tratamento farmacológico da doença do mesmo modo que tratamos a sua prevenção, pois trata-se de bases normativas totalmente diferentes: uma fisiológica e outra valorativa.

Em segundo lugar, em se tratando das normas que orientam nosso comportamento no convívio social, temos dois pontos. O primeiro, está completamente associado a esse meio que somos capazes de perceber em nosso contexto: qual é a nossa profissão? Quais são nossas experiências de vida? Onde moramos? E, assim, uma série de perguntas pode apoiar o entendimento de que esse meio e esse normal, por mais que se queira convencionar comum, estão distantes de se concretizar. Se temos a orientação de uso de máscaras, luvas álcool gel e outros cuidados de higiene como prerrogativas para o convívio, por si mesmos, eles são incapazes de precaver o estado fisiológico da doença. O segundo ponto, que é determinante para que essa normativa imposta a todos seja eficaz, é a nossa adesão e a nossa experiência com ela. Estamos tendo todos os cuidados recomendados? Por certo, uma coisa ou outra passa. Nosso meio tem muitos estímulos e frequentemente escolhemos agir, interpretar a norma, de modo bastante distinto em relação aquele proposto. Isso não significa que nosso corpo fisiológico será impactado pelo covid. Mas mostra muito de como o normal pode variar drasticamente de uma casa para a outra.

E em relação ao trabalho? Podemos tratar de UM novo normal? Antes mesmo da pandemia já se discutia como mediar as múltiplas mudanças decorrentes da sofisticação tecnológica que é trazida pela Indústria 4.0. Fica a questão: qual é o normal neste caso? Aqueles que estabeleceram que a tecnologia seria usada para fazer determinadas funções ou aqueles que precisam aprender uma série de novos comandos e ferramentas para lidar?  E vejam bem, a questão do juízo de valor aqui não está assentado no que é bom ou ruim, mas no que é normal –normatizado. Como viver essa transição normativa? A situação do momento nos mostra que para aquém do que imaginávamos, os diferentes produtos e serviços ofertados em nossas sociedades dependem menos da tecnologia do que da ação analógica dos humanos. Assim, a partir desses exemplos, fica o convite a refletir: podemos falar de um novo normal transversal a todas as camadas de nossa sociedade? Existe um normal antigo que se aplique a todos os contextos? Qual é o normal que é soberano no tratamento dessa definição na sociedade?

Pense nisso e até breve!

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