
O mundo está em mudança. Nós estamos em mudança.
A formas de entender, ver e ser no mundo são fluidas e nós não tivemos tempo de nos adaptar a isso. De fato, o que mudou foi a nossa percepção em relação ao tempo. Percepção ou percepções em relação ao tempo?
A pandemia trouxe à tona todos os paradoxos em relação as nossas relações com o tempo. Muito tempo em casa, muito tempo no trabalho, muito tempo com a família, muito tempo sem produzir. O tic toc da produção não mudou, mas acelerou. Logo a competição entre quem publica mais fotos de certificados no LinkedIn começou. Claro que a busca pelo conhecimento é uma estratégia interessante para utilização do nosso tempo, assim como a leitura e a matrícula em cursos são pontes possíveis entre a ocupação do tempo, o aumento de nosso capital intelectual, o status e o reconhecimento. A sensação de ocupação do tempo para fins produtivos é exponencial, assim como as constatações de que se está trabalhando muito mais do que antes, que se está gastando recursos próprios para sobreviver ao caos que nossa vida se transformou. O caos é menor pela perda das vidas na luta contra a covid-19. O caos vem dessa nossa impossibilidade de operar como sempre estivemos adaptados a fazer. Adaptar-se significa adotar hábitos, comportamentos. Em outras palavras: adaptar-se é construir normas.
Nossa vida humana é dependente de normas. Não podemos viver sem elas, pois nosso convívio social precisa ser amparado por pontos que nos aproximam dos demais. Seguir as regras ou questioná-las é uma escolha. Entretanto, novamente chegamos a ideia de percepção. Podemos ter a ideia de seguir todas as normas que se impõem, mas isso é improvável. A cada escolha que fazemos, de algum modo, transgredimos as normas sociais ou individuais. Nós não somos sistemas ou máquinas, cuja ação é determinada por código. E nesse ponto é interessante considerar que não buscamos esse determinismo nem mesmo para as máquinas, pois almejamos que elas reproduzam nosso modo de pensar, entender, interpretar e responder – de modo inteligente. Mas, de algum modo, nós gostamos de acreditar que seguimos todas as normas, que somos pessoas exemplares e que estamos tomando decisões devido a alguma imposição externa. Nós negamos a nós mesmos o reconhecimento de que somos seres de iniciativa.
O que essas considerações têm a ver com transição de carreira?
Posso dizer que há muitas possíveis linhas de reflexão para essa questão. Aqui, vou tecer uma. O incremento da tecnologia não para de avançar. A pandemia implicou na disponibilidade inúmeros sistemas de comunicação mediada por computador. Entretanto, o meio por onde se dá o diálogo é apenas um dos pontos do processo comunicacional. Entretanto, os demais pontos não merecem o enfoque, ao menos, não com a profundidade que exigem. Olhamos para os benefícios que temos no aqui e no agora e avaliamos a experiência do escritório tradicional como ineficiente. Será? Não precisamos estender esse ponto, pois não há consenso em relação ao melhor espaço para se realizar o trabalho, pois esse não é o ponto de transição que é mais delicado e mais complexo de se mudar.
Nós estamos em meio a um furação da incerteza. De fato, nós nunca tivemos certeza de nada. Entretanto, as normas que existiam eram fixas e nos garantiam essa percepção de certeza. Hoje, podemos ser o que queremos. Mas ainda não é suficiente para que aquele sentimento utópico de liberdade se estabeleça. Por que? Pois a liberdade é um conceito mais complexo do que os gurus afirmam por aí. Liberdade, como todos os conceitos, tem duas vias de compreensão, pelo menos. Por um lado, ela implica nossa capacidade de escolha, que, por sua vez, impacta no reconhecimento das consequências, que por sua vez está relacionado com responsabilidade.
A outra via da liberdade é a responsabilidade.
Não somos livres sem assumir a responsabilidade que está associada com a nossa possibilidade de escolha. Mudar de carreira é um dos mais claros exemplos dessa questão. Vamos partir do ponto mais comum para esclarecer a ideia aqui: gerações. Se você procurar no Google qualquer texto em relação às gerações, vai encontrar coisas do tipo: os millenials e todas as gerações seguintes, têm valores distintos dos baby boomers, seus pais. Eles não querem entrar em uma empresa e ter sua vida resolvida, pois querem ficar por ali por toda a sua carreira. Eles não querem galgar posições, pois se reconhecem mais capazes para fazer o trabalho. Esses discursos destacam a subversão às normas da fixidez e, assim, destacam o lado bacana de ser livre. Mas e o lado da responsabilidade?
Como o ponto aqui não é a discussão vazia da disputa geracional, mas a possibilidade de reconhecer o trabalho como percurso para entender esse ponto da transição de carreira, vamos refletir sobre como hoje chegamos a esse entendimento de transição.
Até pouco tempo, quando éramos demitidos, nosso currículo era valorizado por sua fixidez. A robustez estava em saber meandros de uma profissão. Nossa relação com a atividade de trabalho era sustentada por essa linha do reconhecimento das normas. A própria ideia de demissão era encarada de modo distinto e raros eram os casos que buscavam mudar o curso de vida. Esse modo de ver as coisas é a base do trabalho como meio de sermos parte do tecido social. Isso se mantém quando tratamos de mudar essa linha, pois hoje o currículo mais valioso pode vir a ser aquele mais diverso. Sinceramente, eu não estou convencida disso. Olhando para as narrativas das pessoas, minha hipótese é a de que para uma afortunada camada social até pode ter se dado tal mudança, mas para boa parte das camadas, ainda conta a fixidez. Mas a superfície, essa pode ter mudado.
Como principal ideia dessa reflexão, fica o convite para que cada um olhe para a sua própria história. Sim, uma abordagem qualitativa em meio ao turbilhão quantitativo dos certificados no LinkeddIn. Você quer mudar de carreira? Primeiro, dê uma profunda olhada para a sua trajetória. Use a lupa para analisar alguns momentos. Como o seu trabalho define você no contexto social? Como você tem se relacionado com as normas do entorno? Como você entende a relação liberdade-responsabilidade?
As respostas para essas perguntas são pistas para que você avalie seu trabalho e perceba como ele sustenta a sua carreira. Lembre-se, ainda, que é por meio dela que você está incluso como profissional no clube social. Como você se vê nessa encruzilhada? Ah, o tempo não para. Mas dar se o tempo para avaliar as próprias escolhas mudar a nossa percepção de tempo.

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net
No mês de agosto, realizamos a série Vozes Coffee and Work. Ouvimos as reflexões de quatro profissionais e suas experiências na transição de carreira. Quer saber mais sobre essas reflexões? Confira nosso IGTV.
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