Por Gislene Feiten Haubrich

O portal Harvard Business Review (HBR) publicou (13/03) a matéria “Digital transformation is not about technology”. Como em todo bom artigo, os autores iniciaram sua explanação com dados contextuais acerca das tendências para a gestão nos próximos anos. Afinal, apesar de humanos e complexos, apenas nos convencemos que há um desafio pela frente quando somos confrontados com os ditos números. Não importa o tema; precisamos de uma estatística para que tenhamos o conforto de estar dentro ou fora de determinado grupo. No caso da matéria publicada, o estudo acionado para justificar a importância do texto foi publicado no The Wall Street Journal. Em síntese, o título da matéria destaca “gestores consideram que a transformação digital será o maior fator de risco em 2019”.
A partir deste link com o estudo, os autores procuraram destacar que as tecnologias, que sustentam a transformação digital, provêm oportunidades para ganhos em eficiência e aproximação com clientes. Entretanto, eles também ressaltam que essa relação entre tecnologia e pessoas não se dá de forma orgânica, implicando uma distância entre os aspectos culturais da organização e o uso eficiente dos recursos tecnológicos. Novamente chegamos àquele ponto chave: a mentalidade dos indivíduos e a sua abertura às mudanças. Por fim, para que a transformação digital não implique mais dores de cabeça às organizações (que, em última instância, são pessoas), os autores propõem 5 lições fundamentais à condução bem sucedida desses processos de mudança.
- 1) Definir a estratégia do negócio em primeiro lugar
- 2) Considerar as ideias de quem está dentro da organização
- 3) Desenhar a experiência do consumidor de fora para dentro
- 4) Reconhecer e lidar com o medo dos empregados em relação a substituição de seus empregos
- 5) Trazer elementos culturais de startups para a empresa
Poderíamos detalhar cada uma dessas lições, mas como o texto (em inglês) já faz isso, acredito que seria mais interessante repercutir as ideias incrustadas nesses cinco pontos, a começar pelo primeiro. Todo mundo que já leu “O Monge e o Executivo”, “Geração de Valor” ou qualquer destes livros de autoestima e gestão já leu isso. O gato de “Alice no País das Maravilhas”, inspirado em Sêneca, já dizia: “se você não sabe onde quer chegar, qualquer caminho serve”. Então, toda a criança já cresce com esse ensinamento em mente. Entretanto, nós, humanos, frequentemente, não somos capazes de ouvi-lo, depreende-lo e traduzi-lo para nosso cotidiano. A premissa básica de qualquer gestão: saiba o que você quer. Tenha foco.
Mas o mundo é tão repleto de opções. Por que escolher uma e focar? E se ela não for a melhor? E se der errado? No fim, ficamos no círculo vicioso da dúvida, não mudamos nosso comportamento e temos de correr contra o tempo para fazer as coisas acontecerem. “Na próxima vez, faremos diferente”. O comportamento se repete individualmente e amplia suas consequências coletivamente, nas organizações. Se você percebeu, a questão a ser resolvida é humana, antropológica, e não numérica, discursiva. Quantas vezes já ouvimos: o mundo não tem mais espaço para amadores. Infelizmente, a questão não é ser amador ou profissional, mas ser humano e compromissado com o coletivo, o que nos leva à segunda lição: dedicar ouvidos e dar voz a quem está dentro da organização. Quem nunca disse …
“A grama do vizinho estava mais verde”
ou,
“Santo de casa, não faz milagre”
ou ainda,
“Casa de ferreiro, espeto de pau”
… que atire a primeira pedra.
Esses três ditos populares estão intimamente ligados à pratica da relação entre os diferentes públicos de funcionários que compõem a organização. Vamos imaginar aquela tradicional pirâmide organizacional. Vertical mesmo, pois as horizontais são bastante raras. As holocráticas, então, praticamente inexistentes. Isso me fez lembrar que a noção de democracia nos ajuda a entender porque mantemos o estilo vertical, ainda que digamos que a estrutura foi horizontalizada. Mas essa será pauta para outro artigo, ou esse não terá fim. Precisamos de foco, lembra?
Voltando à lição 2, os autores do texto da HBR destacam a importância de ouvir quem está mergulhado no cotidiano das organizações, pois é provável que as contribuições deles tenham mais efeito em alguma mudança do que as indicações de consultores. Que fique claro: consultores ajudam, e muito, a iluminar alguns pontos de escuridão nas esquinas da estrutura, mas eles não têm a fórmula mágica para que os problemas tenham solução. A solução está nas pessoas, cujos comportamentos implicam a cultura, a realidade que é vivida. Voltamos ao ponto do círculo vicioso da dúvida, que nos limita no avanço do estabelecimento de um foco e tudo mais.
E já que estamos falando de pessoas, sempre é importante lembrar que os consumidores, por enquanto são pessoas! Mesmo no ramo pet, onde os gatos, cachorros e papagaios têm importante participação na decisão de compra (eles fazem protesto se você não comprar a ração certa ou manter o banheiro deles organizado), ainda são os humanos que vão decidir onde gastar seu dinheirinho para ter, em retorno, a qualidade do produto/serviço adquirido. O que aparece aqui, como na lição 2, é o engajamento com as pessoas, a relação com o outro, a fim de entender sua visão de mundo e colaborar com ela.
Claro, num contexto onde nossa categoria consumidor é primordial em relação a categoria humano, isso parece muito claro. Mas na prática, esse tipo de escolha de constituição mercadológica tem dado seus resultados. Sem trazer números, mas algumas questões: você sabe quanto de seu orçamento é dedicado a medicamentos? Quanto a indústria farmacêutica tem ampliado seu market share? Você tem ideia de quantos suicídios tem ocorrido nos últimos anos? Teríamos outras perguntas, mas se você googlar isso já terá base para umas horas de reflexão. Aí poderemos voltar ao item 1, quem sabe.
A lição 4 é um dos desafios discutidos constantemente em fóruns sobre o futuro do trabalho. Nesta, como em outras revoluções tecnológicas, empregos serão extintos e outros serão criados. Talvez a velocidade seja um pouco maior. Mas o fato é: precisamos desenvolver aquela parte do cérebro que sempre ouvimos que não seria usada. Outro fato, relacionado às questões anteriores: precisamos estar apoiados, enquanto humanos, para que essa transição se dê com os traumas mais superficiais. A única maneira de lidar com a dúvida, em relação ao futuro, é por meio da criação de certezas em relação às possibilidades de desenvolvimento e aprimoramento de nossos comportamentos. Precisamos do outro, nosso colega mais próximo ou mais distante; precisamos escolher estar com ele, aprender com ele e, sobretudo, criar com ele.
O ponto 5, no meu ponto de vista, o mais simplista e superficial. Além contrapor às lições 2 e 3, ainda desconsidera o que estamos batendo na tecla deste o princípio deste texto: a cultura é formada por comportamentos. Comportamentos são escolhas de indivíduos, que podem ter maior ou menor nível de consciência (o que também será pauta de outro texto). Então, um gestor ou animador pode fazer uma imersão no Vale do Silício, pode ver o Google (ou outra) durante uma tarde ou uma semana, mas ele não será capaz de levar elementos da cultura desta organização para a sua. E duas razões básicas fundamentam esse olhar.
Primeiramente, uma visita de um dia ou semana, ou uma biografia, não permitem que você viva aquela cultura, apreenda-a e participe dela. Lembra do princípio de qualquer relacionamento? A gente fica deslumbrado, pois é impactado por muitas mensagens, mas não é capaz de interpretar de modo mais profundo o que está sendo dito naquele momento. A gente precisa de tempo. Então, para que pudéssemos receber, interpretar e aprender o que é vivido em determinada organização, a sua cultura, precisaríamos estar, por um período muito longo, expostos à ela. Em todos os casos, até chegarmos à nossa organização com aquele turbilhão de informações, passaríamos por novas experiências, que implicariam nossa percepção e mudariam nosso ponto de vista. Você pode discordar de mim, mas se analisar uma experiência imersiva que tenha feito, é muito provável que você chegue a essa conclusão.
Em segundo lugar, a cultura não é o que uma pessoa decide que ela será. Se assim fosse, chamaríamos de estereótipos somente, e não de cultura. Estereótipos fazem parte da cultura e é por isso que frequentemente ouvimos a expressão cultura brasileira associada a coisas que nós talvez nunca tenhamos experimentado. Com esse exemplo acho que você consegue entender o que eu quero dizer: a cultura vai além do que alguém diz que ela é. Cultura é aquilo que nós vivemos, aprendemos, modificamos. Então, não dá para valorizar quem vivencia o cotidiano organizacional se consideramos apenas algumas ideias. Por isso, a transformação digital não se reduz a um debate em relação às tecnologias que nos deslumbram, mas implica como vamos escolher viver com elas, usá-las e transforma-las. Enfim, as lições que inspiraram essa reflexão são válidas, sobretudo para pensar nas contradições que estamos suscetíveis a cometer pela urgência em atender ao que se impõe, ao que nos assusta e deslumbra simultaneamente.
Foto: Pixabay
E você, o que acha dessas lições?
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