Coffee and Work

Por Gislene Feiten Haubrich

O documentário Privacidade Hackeada (The Great Hack), lançado pela Netflix no dia 24 de julho, está dando o que falar. O foco está nas grandes corporações, como Facebook,  que destacam os dados como o mais valioso recurso na contemporaneidade e no futuro. Mas será mesmo? 

Entre as grandes questões levantadas pelo documentário estão: como os dados pessoais vêm sendo captados? Quem os utiliza e quais são seus objetivos. Essa discussão, que está apenas começando, tem muitas nuances. Entre elas, o trabalho.

O trabalho será impactado amplamente pela tecnologia e pela articulação dos dados. Por que? Porque ele é o resultado das nossas escolhas tanto para o uso que daremos ao aparato tecnológico, quanto pelo valor dos dados que serão analisados por nós e investidos para suportar ideologias. 

Apesar de este ser um dos temas de interesse central com o projeto Coffee and Work, esta discussão quer considerar dois elementos do documentário para pensar sobre o trabalho. O primeiro deles é composto por dois comentários de Brittany Kayser, estrategista da Cambridge Analytica, quando questionada por sua escolha de trabalhar na empresa:

“Eu dediquei toda a minha carreira até aquele momento trabalhando pelos direitos humanos. Vamos olhar para aquele momento”. – Brittany Kayser 

Entrevistador: “Uma das coisas que mais me intriga é saber o que aconteceu entre você e as equipes de Obama e Hillary”.

Brittany: “Eles nunca se ofereceram para me pagar. E quando a sua família perde todo os dinheiro, perde a casa, e quando seu pai, que é o principal provedor da casa, tem de fazer uma cirurgia no cérebro e nunca poderá trabalhar de novo… Nesses casos você precisa trabalhar para pessoas que pagam você”.

De acordo com a narrativa de vida de Brittany, ela iniciou sua carreira no âmbito político aos 15 anos, quando foi estagiária da campanha de Obama, que é conhecida como a primeira e bem-sucedida ao usar análise de dados como elemento basilar à sua construção. Depois desta experiência ela afirma ter trabalhado para a Anistia Internacional, Nações Unidas e Parlamento Europeu. 

Mas em 2014 ela recebeu uma proposta de trabalho de um dos grandes nomes da Cambridge Analytica. Na época, sua família passava por intensos dramas, como a falta de recursos e a frágil saúde de seu pai. Ela aceitou o emprego e trabalhou em ao menos duas campanhas polêmicas: Brexit e Trump. Com este contexto no radar, você poderá compreender facilmente o argumento que queremos evocar aqui.

Podemos pensar que Brittany foi corrompida em função das altas quantias de dinheiro que sua contratação deve ter envolvido. Em nossa cultura está dado que o capital é elemento corruptivo. Mas eu acho essa explicação muito rasa, pois desconsidera a dimensão humana de nossa espécie. 

O diálogo de Brittany com o entrevistador foi um dos momentos mais marcantes do documentário, pois revela nosso constante embate, entre a ética, grana e propósito. Será que há uma equação possível para resolver esse impasse?

No meu ponto de vista, considerar o conflito que Brittany deve ter vivido no momento que tomou a decisão de migrar sua vida para a Cambridge Analytica é um exercício intenso de empatia e de autoconhecimento. Se olharmos para nosso cotidiano, quantos convites temos para decidir qual caminho tomar. Estamos colocando elementos na balança a todo o tempo e definindo os eventos seguintes de nossa vida com base nessas escolhas. Nenhum dos grandes acontecimentos mundiais transcorreu da imposição de uma ideia, mas da adesão a ela, diariamente, pouco a pouco. Essa reflexão me conduz ao segundo momento chave de Privacidade Hackeada, na reflexão de fechamento.

Então, como indivíduos, nós podemos limitar a inundação de dados que nós estamos difundindo por todos os lados. Ainda assim, não há uma bala de prata. Não há como estar alheio a isso. Então, você precisa entender como os seus dados estão afetando a sua vida. A nossa dignidade enquanto humanos está em jogo. Entretanto, a parte mais complexa em tudo isso… é que esses sites e divisões devastadoras começam com a manipulação de um indivíduo. E então outro. E mais outro. Então, não há o que dizer a não ser perguntar a mim mesmo: eu posso ser manipulado? Você pode ser manipulado?

David Caroll, professor associado – Parsons Escola de Design

Falar de manipulação é tão delicado quanto falar de ética, pois estamos tratando de limiares que são como uma corda bamba: qualquer escorregada implica uma caída que pode ou não ter volta. Após apresentar muitos lados quanto as facetas da Cambridge Analytica, Facebook e Google (entre outros grandes players da informação), o encerramento do documentário da Netflix instiga um olhar para dentro de cada um de nós. Ou melhor: um olhar para fora a partir de nossas escolhas. É fácil apontar para grandes corporações, usando sua casca protetora e acusá-las de mal uso acerca dos dados que permitimos que elas façam a captação. Mas é essencial considerar que todos temos participação na formação e, principalmente, no fortalecimento e encorajamento das ações organizacionais. 

Nossa preguiça limita nossa leitura dos ‘termos e condições’, que aceitamos sem considerar. Você pode dizer que esses ‘termos e condições’ não são produzidos para a nossa leitura, afinal são extensos e com uma linguagem pouco usual. Aí precisamos lembrar: em uma sociedade regida pelo direito, ler, entender e praticar contratos estabelece uma democracia e as relações sociais. A questão é: como organizações inovadoras e altamente tecnológicas não conseguem virar a chave e promover relações diferentes com seus usuários? Por que nós, usuários, aceitamos, ainda, esse tipo de burocracia [e outros], que não nos protege e ainda é usada contra nós mesmos? Se o futuro tem seu valor central assentado nos dados, nós temos de avaliar como nós estamos aprendendo e multiplicando esse ativo, assumindo a responsabilidade, a iniciativa e a transformação sociocultural que nós tanto almejamos. Afinal, parafraseando Caroll, tudo começa com o engajamento de um indivíduo, outro e, então, outro. A escolha é nossa, como foi de Brittany, quanto queremos pagar por essa corda bamba que é a vida. Preparado para pensar sobre suas ínfimas escolhas?