Por Gislene Feiten Haubrich

Coringa (Joker), já premiado no Festival de Veneza, estreou oficialmente em 03 de outubro. O filme é rodeado por polêmicas e indiscutivelmente forte. Como tudo, não é uma unanimidade, pois há quem questione a atuação – impecável, no meu ponto de vista – de Joaquin Phoenix ou mesmo o enredo do filme. Por aqui, não vamos entrar nesses méritos, mas apresentar algumas das ideias sobre a perspectiva do trabalho que estão, de alguma maneira, retratadas na narrativa da vida de Arthur Fleck.
ADVERTÊNCIA: Temos de começar este texto fazendo uma série de ressalvas, a fim de evitar incompreensões sobre o seu propósito. Primeiramente, não temos o interesse – aqui – de refletir sobre a saúde mental do personagem Coringa. Quem quiser leituras com essa abordagem, sugiro dar uma investigada pelo Google. Por certo, Arthur sofre com diferentes sintomas que dificultam sua socialização, mas para entendê-lo em sua subjetividade, parece-nos óbvia a presença de duas partes: uma formação em psicologia/psiquiatria e uma descrição mais específica do quadro clínico do personagem. Ambos, são recursos que não estão à nossa disposição. Em segundo lugar, também não se pretende nenhuma análise política – que bem caberia. Este texto tem como principal motivação o convite a reflexão sobre nossas posturas no trabalho, em situações de inclusão, por exemplo, ou mesmo estereótipos com os quais precisamos lidar. Em suma, ao assistir Coringa, podemos encontrar uma fonte muito fértil para diferentes formas de ver e entender o mundo que construímos.
Umas das principais reflexões que Coringa inspira é a questão da inclusão. Mais exatamente, sobre o modo como tratamos com quem é diferente de nós, seja por alguma condição física, emocional, ou outras. Aprendemos a classificar as pessoas como boas ou más e esquecemos que elas têm uma história e limitações humanas. Os filmes de super-heróis têm muito impacto nisso.

Por isso, é interessante pensar o vilão de uma outra maneira, entendendo seus conflitos e alguns elementos contextuais o que levaram até a narrativa presente. Em algumas cenas enigmáticas do filme, as situações vividas por Arthur repercutem cenas diárias de nossa vida, como a relação com os colegas de trabalho e o trajeto no ônibus. Mesmo ciente da condição do rapaz que fazia o filho gargalhar no transporte público, a mãe teve, pode-se dizer, medo de tranquilizar Arthur, sorrindo de volta, ou dedicando um olhar empático pela sua condição. Em outra situação, quando o palhaço tem sua placa de divulgação roubada e é violentado por um grupo de jovens, a base está na incapacidade de lidar com o diferente, com alguém que realiza seu trabalho, ainda que tenha qualquer limitação.
A truculenta experiência encerra com um desconto na folha de pagamento do artista, que é questionado por não ter entregue a placa de volta ao local de trabalho. Tenso, não? Você é roubado, sofre uma agressão física e, de sobra, ainda sai no prejuízo financeiro. Guardadas as proporções, podemos dizer que todos já ouvimos versões sobre sequências de fatos inusitados como esses, no trabalho. Em suma, quanto a este ponto, colocamos a questão: você já parou para pensar como vai seu respeito com quem é diferente? Talvez você já esteja se preparando para lidar de modo crítico com algo que era naturalizado – o deboche. Talvez, ainda haja escorregões. O ponto aqui é o convite a pensar sobre nossa resposta às diferenças, reconhecendo-as em nós mesmos. Mais do que isso, identificar e atacar esses comportamentos viciados que predefinem posições nas empresas, governos, famílias, etc.
O segundo ponto não é menos polêmico: ah, essa tal de felicidade que precisamos expressar.

Não sabemos exatamente porque, ou se é real, o incentivo da mãe de Arthur para que ele mantivesse sempre um sorriso no rosto. A questão aqui é: quando foi a última vez que você se sentiu pressionado a mostrar uma felicidade que talvez não estivesse ali? No universo empresarial é comum a realização de pesquisas de satisfação e felicidade no trabalho. Por trás dos seus resultados está a pressão organizacional pela manifestação de felicidade, já que ela garante prêmios e boa reputação. Implícitas nestas investigações está a demanda social por sentir-se feliz, mas além, mostrar-se feliz. As várias vezes, ao longo do filme, que Arthur ressalta a frase “mostre um rosto feliz”, conduz-nos a pensar sobre esse anseio e o quanto ele impacta todas as decisões que tomamos, seja na escolha do que vestir, comer ou fazer nas horas vagas. Um rosto feliz é importante para que tenhamos constância em nossas vidas. Mas só será assim, se a motivação facial estiver, ao menos um pouco, calcada em fatos de nossas vidas. Um olhar otimista pode nos garantir estabilidade emocional, mas reconhecê-lo tem sido atividade complexa, pois os parâmetros que se naturalizam são, por vezes, inalcançáveis. Pode estar aí a resposta para o aumento da depressão e outras doenças mentais, como o burnout, por exemplo. Nesse sentido, Coringa é um lembrete sobre as consequências da busca pelo eterno rosto feliz.

O terceiro, e último, ponto que pretendemos abordar com este texto é um olhar crítico sobre nosso trabalho e como decidimos realizar nossa atividade. Enquanto seres sociais, sempre estamos expostos uns aos outros. É provável que um apresentador de TV – como em Coringa – ou um youtuber, ou político, tenha ainda mais exposição. Em todos os casos, saber que estamos sob holofotes permanentes é desconfortante.
Talvez aí resida a explicação de nossa escolha por evidenciar, publicamente, o que seria – mediante uma definição socialmente construída – uma fraqueza do outro. Quando destacamos o outro por aquilo que causa embaraço, escondemos de nós mesmos nossas fraquezas e pontos a melhorar. Por isso, talvez o ambiente laboral seja tão tóxico para nossa saúde, pois o frequentamos por muitas horas e aprendemos que podemos exceder qualquer limite para atender aos objetivos da empresa.
Dificilmente a gente se dá conta de buscar entender as razões que nos levam a tomar determinadas decisões no exercício de nossa atividade de trabalho. Entretanto, deveríamos adotar essa prática nas mais ínfimas experiências, pois delas são feitos os momentos marcantes e definitivos. Quando escolhemos como estabelecer nossas relações com o outro, quais critérios éticos vamos seguir para determinar nosso comportamento, nesse momento estamos definindo nosso ponto de vista em relação ao mundo. Mais do que isso, estamos ratificando ou tentando transformar esses comportamentos que são naturalizados na sociedade. Há algum tempo era natural fazer piada com pessoas devido à sua cor, religião, sexualidade, corpo. Na contemporaneidade, essas abordagens, sabe-se, não são tão naturais assim e demandam de nós habilidades, até então, desconsideradas para exercer o trabalho de maneira eficaz e eficiente.
A Inteligência Artificial se sofistica, mas está distante da aprendizagem emocional. Coringa vem nos lembrar que precisamos incentivar o melhor do outro por meio de nosso trabalho e que isso pouco tem a ver com a impossibilidade da crítica, mas o oposto. Precisamos aprender a lidar com a diferença, buscando ser críticos, sem o enfoque na ofensa, mas no desenvolvimento. O trabalho é um campo fértil para aprendermos e nutrirmos esses comportamentos inclusivos, críticos e transformadores. Mas como Coringa vem para lembrar, temos de usar a inteligência e a sensibilidade para nos aproximar uns dos outros. Em nossos dias, isso é romper com o status quo. e fazer a revolução.
Informações adicionais:
Até 15/10 o filme já registrava a marca de US$ 500 milhões nas bilheterias, colocando-o entre as 10 maiores produzidas pela DC.
Exibição em 24.555 salas de cinema no mundo.
One thought on “Há sentidos sobre o trabalho em Coringa?”
Excelente texto, em tempos em que se discute que politicamente correto está errado, este texto faz um ótimo contraponto. Precisamos sim cuidar ao nosso redor para que ningém seja afetado por nossos atos. Parabéns!
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