
A expressão “politicamente correto” tem sido usada há algum tempo para determinar mudanças de comportamento, especialmente marcadas pelo uso da linguagem. Importada do inglês americano, politicamente correto é, por vezes, uma forma de tratamento concedida às pessoas que se esforçam para romper com estereótipos e visões de mundo desconexas no momento que vivemos. Trata-se de uma caricatura ou meio de ridicularizar esse esforço, pois para muitos, questionar paradigmas e reconfigurar formas de fala trata-se de um exercício pouco prático ou efetivo ao convívio humano.
Mas será?
Confesso que mais para jargão, o uso de politicamente correto só passou a chamar minha atenção quando o filósofo Luiz Felipe Pondé passou a adotar o “politicamente incorreto” como meio de protesto aos, segundo ele, pouco genuínos interesses em uma ruptura de pensamento.
Desde então, vimos crescer a expressão de manifestações de ódio e de falta de respeito às pessoas. E, não, não estou dizendo que Pondé incentivou as pessoas a odiarem ou a serem xenófobas. Na verdade, creio que esse movimento já vinha aquecido, pois nunca foi superado e a visão hierárquica entre as pessoas, mediante suas cores, credos e visões de mundo sempre esteve à volta por uma busca pelo poder. De fato, podemos reconhecer que a crítica dele tem boas doses de conexão com o esvaziamento das ideias que sustentam o politicamente correto. Infelizmente, há aqueles que fazem do uso verbal um meio de submissão simbólica e nós, por vezes, não damos conta de reconhecer o quanto sancionamos o oposto do que gostaríamos por estacionarmos no raso da reflexão.
A ausência de uma capacidade reflexiva, seja por desinteresse ou incompetência (ou qualquer outra razão), implicou na confusão frequente entre as noções de autenticidade e de liberdade de expressão.
Vamos lá. De acordo com o dicionário Michaelis, autenticidade é relativa ao autêntico, ou seja: “de autoria ratificada, origem comprovada, digno de confiança”. Ou seja, passou-se a acreditar que autêntico é aquele que eleva suas origens aos níveis mais extremos, quer dizer, ignorando uma série de eventos imbricados à essa origem. Bom, ainda que as questões identitárias sejam fundamentais para que nós nos sintamos parte dos contextos nos quais estamos inseridos, é improvável que nossa identidade seja fixa, presa às visões de mundo quando ele tinha muitos menos habitantes, quando a tecnologia não tinha o vigor ou sofisticação que tem hoje. Como os objetos, nós avançamos a partir de nossas possibilidades de adaptação e aprendizado às condições mais ricas de diversidade e convivência humana. Para pegar um exemplo prático: quando Ford aderiu às linhas de montagem, que sustentaram a produção massiva de carros, todos eles eram fabricados em uma única cor. Em 2018, as Basf, fornecedora química para a indústria automotiva global, havia elaborado um catálogo com 65 cores distintas APENAS para a América do Sul. Qual a analogia? Hoje podemos escolher entre muitas possibilidades e não precisamos nos adequar ao padrão de cor que é imposto. Na prática, fica claro que aprender a lidar com a diversidade está em todos os lugares, mas parece que no desenvolvimento do comportamento humano isso tem ficado em segundo plano.
E quanto a liberdade de expressão? Bom, aqui temos de chamar nosso “guru” dos estudos da linguagem, Bakhtin. Como já mencionamos em diversas oportunidades, enunciar, comunicar, tem duas dimensões inevitáveis: por um lado somos sempre responsáveis pelo que falamos e praticamos (lembrem que a ação é também uma forma de comunicação). Assim, todas as nossas formas de expressão exigem de nós responsabilidade: o que dizemos e fazemos é uma escolha NOSSA, individual, que não pode ser atribuída a outra pessoa, um antepassado, por exemplo. Entretanto, nós não estamos sozinhos nesse mundo e tudo que está presente nele passa pela nossa capacidade humana de comunicar, de usar a linguagem. É por isso que sempre respondemos ao que foi dito antes de nós, assim como nós instigamos os demais a dizer algo na sequência do que nós dissemos. Então, a liberdade de expressão está associada a essas duas questões: nossa capacidade de responder e de assumir a responsabilidade pela resposta dada. Então, caso eu queira sair falando, por exemplo, que as pessoas brancas são melhores do que as outras, foi uma escolha minha fazê-lo e cabe a mim lidar com as respostas que serão dadas a essa afirmação. A argumentação mais simples e direta a uma afirmação como essa é: como você sustenta a sua ideia. Você se deu conta do outro? De como as realidades construídas por cada um de nós se encontram e como determinados usos de linguagem simplesmente não tem mais sentido, pois foram cientificamente refutadas?
Para finalizar essa reflexão, fica então a questão: precisamos do politicamente correto ou de políticas que nos façam refletir, pensar e interpretar tudo que está em nosso entorno a fim de que possamos avançar tão longe quanto os robôs com os quais nós queremos coabitar? Se o caminho passa por aprender a usar a linguagem, expurgando expressões racistas, misóginas, xenófobas e preconceituosas de qualquer modo, sigamos por ele. Que a partir dele, nós possamos encontrar outras maneiras de construir uma realidade mais inclusiva e diversa.

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net