Coffee and Work

 

No último vídeo que lançamos lá no canal Coffee and Work no YouTube, falamos sobre a questão do tempo a partir do conceito de “normalidade fabricada”, mencionado pelo estudioso indiano, Venkatesh Rao.

Essa concepção se refere a uma sensação de “normalidade” construída para que nós tenhamos uma visão mais estática do futuro e dos eventos da vida. A normalidade fabricada, na visão de Rao, resulta do trabalho de escritores de ficção científica e de futuristas que elaboram muitas das narrativas que nos conduzem a avaliar as situações, reconhecendo uma evolução dos fatos, apenas a partir de grandes rupturas no modo de vivência. Por exemplo: a existência de um vírus pandêmico, capaz de causar um colapso em nossas formas de viver, vinha sido “anunciado” por uma série de investigadores e cientistas. Não porque eles almejassem tornar a realidade mundial em algo caótico, mas porque eles observaram nossos comportamentos ao longo do tempo e perceberam que nós naturalizamos muitas noções que, com o conhecimento hoje viabilizado, poderiam já ter sido transformadas. Chegamos, então, a um momento de ruptura. Por inúmeras razões, o Corona vírus teve uma abordagem distinta de outros vírus. Agora, almejamos novamente um momento de ruptura. Não aceitamos o fato de usar máscaras em qualquer lugar ou de viver nossas relações mediadas pelo computador. Queremos a vacina. Queremos ruptura.

Muitos acreditam que a ruptura causada pelo vírus possa ser um divisor de águas no comportamento humano. Mas será?

Nós podemos abordar essa questão de diferentes maneiras. Entretanto, vamos considerar a possibilidade do trabalho remoto, o que nos levará ao conceito de nomadismo digital.

Vamos ao contexto: de acordo com a Agência Brasil, a partir de uma pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), 46% das empresas adotaram o trabalho remoto como alternativa para a continuidade de suas rotinas. Entre as empresas adotantes, para 67%, o início foi muito complicado e representou dificuldades de adaptação. Daquelas que adotaram o teletrabalho, 53% pertencem ao ramo dos serviços hospitalares e 47% à indústria. 33% das empresas adotou o chamado sistema parcial de trabalho remoto, quando apenas alguns dias da semana são dedicados ao/à trabalhador/a para realizar suas atividades a partir de sua casa. Entre as principais barreiras: a ausência de familiaridade com as ferramentas (34%) e a atuação das equipes de TI (28%). Apenas 9% das empresas apoiaram os/as trabalhadores/as com custos relacionados à internet e 7% com custos com telefone.

Apesar de o foco não ser a opinião dos trabalhadores, estima-se que muitas empresas (36%) tendem a retomar as atividades presenciais das pessoas tão logo seja possível. 34% das empresas pretende manter a possibilidade para até 25% do quadro de funcionários. 29% avaliam disponibilizar a prática para até 50% do quatro.

Bom, mas o que isso tudo tem a ver com nomadismo digital? Primeiramente, vamos entender o que ele é: trabalhar remotamente, sem escritório fixo. Possibilidade de guardar o escritório na mochila e predisposição para montá-lo (o escritório móvel) em qualquer lugar: na praia, no shopping, no café, no coworking, sentado/a à cama, no banheiro…

Se você escrever “nômade digital” no buscador do Google Fotos, você certamente ficará tentado a viver como tal. Afinal, quem não quer sentir-se desamarrado, livre das cordas do empregador, do cliente, ou de quem quer que seja? Quem não quer ganhar dinheiro em qualquer lugar?

Entretanto, muitas questões podem ser postas a partir desse olhar: será que essa liberdade existe? Será que nós conseguimos simplesmente fechar o computador, colocá-lo na mochila e sair andando de um lado para o outro, como fazem muitas tribos em diversos pontos do mundo? Nossa visão de realidade e de acomodação vai impactar densamente nisso. Afinal, quem aprecia a linearidade e certa manutenção de tradições, dificilmente se adaptaria a viver e ter uma profissão extremamente móvel. Você teve a oportunidade de realizar o seu trabalho remotamente nesse período de pandemia? Como foi a experiência? Ainda assim, não podemos confundir o home office com o nomadismo, pois ter o escritório em casa ou em qualquer lugar fixo (coworking, hub, etc) não significa o movimento. Por outro lado, você teve de realizar um movimento em suas rotinas e sua relação com ele pode revelar indícios sobre seu modo de viver o trabalho, o emprego e a profissão. Caso sua empresa mantenha a possibilidade de trabalho remoto, você pode optar e ser um nômade digital ou apenas trabalhar em home office, no aconchego do seu lar ou de outro contexto mais agradável do que o cenário da empresa. Outra questão que precisamos destacar é: ainda que o nômade digital seja móvel geograficamente, há uma fixidez no que se refere à presença e rastro digital. Mas isso é papo para um outro post.

Enfim, voltando ao conceito de Rao, se visamos um futuro distinto do presente que vivemos, precisamos assumir o protagonismo na tomada de decisão nos próximos 10 segundos, 10 minutos, 10 horas… Muitos/as trabalhadores/as sentem-se incompletos nas escolhas profissionais que fizeram, ou com a vivência dos padrões/normas que a profissão que escolheram. Talvez, nem todos nós tenhamos nascido com essa flexibilidade de colocar o escritório na mochila; de comprar passagens para terras paradisíacas que garantam registros lindos sobre um suposto bem-estar no trabalho em qualquer lugar. Há quem necessite um equilíbrio, há quem goste de estabelecer limites entre o tempo investido para o empregador e para os demais atores de sua vida público-privada. Temos de buscar entender qual formato é mais adequado ao nosso jeito de viver o trabalho e renormalizá-lo, investindo nossa inteligência na construção de diferentes práticas. Esperamos que você se sinta ao menos um pouco inspirado a escrever sua própria narrativa e vá além do aguardar aos grandes desfechos e etapas socialmente definidas, mas inclua a sua forma presente e futura de fazer parte desse construto social que é o mundo, a vida, a comunidade.

 

Para ir além: caso queira saber mais sobre o estilo nômade contemporâneo, o antropólogo Dave Cook escreveu um texto sobre o assunto (em inglês).

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net