
Confesso que sempre fugi dos estudos sobre gênero. Não que eu duvide da importância deles. Ao contrário, por saber da relevância dessas abordagens, eu sempre soube que “não teria maturidade” para lidar com eles academicamente. Como cria do movimento “girl power” dos anos 90, eu sou feminista.
Não radical, mas bem enfática nas minhas posições e experiências cotidianas, especialmente na definição do que eu posso ou não posso fazer. Isso significa que eu defendo a opção de escolha para todas as mulheres: das que desejam viver com o que se convencionou chamar de “estilo masculino” àquelas que pretendem dedicar-se à família em regime exclusivo, passando por todas aquelas que visam encontrar possibilidades de viver sua vida em diferentes espaços, mediante os papeis sociais de mãe, empreendedora, profissional liberal, freelancer, consultora, operadora, e por aí vai. Mas eu defendo a possibilidade de escolha, fundamentada e orientada pela reflexão da mulher a partir da sua possibilidade de coleta de informações sobre o contexto, sobre si mesma e sobre o que ela almeja. Isso é muito distinto de uma escolha decorrente de cerceamentos estereotipados. Quer dizer: a mulher não tem elementos suficientes que a encorajem a ser engenheira, embora ela saiba que pode ser. Então, o entorno (pais, professores, colegas…) emite mensagens do tipo: “ah, mas as características femininas convergem mais com aquela profissão”, que nada tem a ver com engenharia. Assim, dia após dia, esse cerceamento vai a afastando de algo que ela já reconhecia dentro de si – e por resultados de suas experiências de vida – como melhor percurso para se construir como humana.
Há quem possa dizer que esse cerceamento já começa muito antes, com a definição de quais brinquedos ou brincadeiras são adequadas para cada gênero. Há ainda quem ressalte que adultos, cuja mentalidade já está bastante orientada por suas experiências, fundamentalmente distintas da criança/ jovem, acabam por orientar meninos e meninas pelo medo: “se você ficar correndo com os meninos, você vai ficar malfadada”, ou “se você entender mais de matemática que os meninos, nenhum vai querer saber de você”. E por aí vai! O volume de enunciados fundamentados em práticas culturais estereotipadas é infinito e se renova diariamente. A base da mensagem, no entanto, se mantém: seja menos do que você pode ser.
– Aqui preciso de uma pausa, (pausa I) pois eu já estou vermelha de raiva devido a esse tipo de estereótipo.
Para se ter ideia da influência dos comentários no reconhecimento daquilo que gostamos ou não de fazer, ou de como podemos reconhecer como cada atividade impacta no nosso processo de aprendizado, vou trazer um exemplo particular. Quem me conhece há algum tempo – mais de 10 anos – sabe que eu costumava dizer: “eu odeio cozinhar. Jamais vou cozinhar”. Por anos, eu almoçava em restaurante e não fazia minhas refeições mesmo. Entretanto, a vida sempre vem aí para dizer: “jamais é muito forte, gata! Segura a onda”. Assim, quando eu fui fazer meu doutorado sanduíche, que foi a minha primeira experiência morando sozinha, eu não tive opção: o restaurante universitário não abria aos finais de semana e eu não tinha como bancar almoço em restaurante todos os finais de semana. Restou o quê? Cozinhar. Ali comecei a experimentar essa função e sabe que eu me dei conta de uma coisa? Cozinhar pode ser legal. É possível aprender muitas coisas sobre misturas químicas para chegar ao sabor pretendido. Tem muita ciência no cozinhar. Mas eu sempre neguei isso. Sabe por quê? Pois estava marcado no meu imaginário que cozinhar era coisa de mulher e eu quis fugir das coisas de mulher.
Mas nem tanto, é claro. Eu não escolhi uma faculdade para romper com os estereótipos profissionais destinados a mulher. Ao contrário, eu cursei Relações Públicas. Financeiramente, posso confessar que inúmeras vezes eu já disse para mim mesma: “o que eu tinha na cabeça? Estudar pessoas?”. E olha que eu ia bem em matemática.
– Pausa II: isso aqui é o típico pensamento marcado por estereótipo de gênero. Afinal, por que eu não iria bem em matemática? Meus pais sempre estiveram no meu pé para estudar a matemática, afinal, usaria ela muito ao longo da vida. Assim como a língua portuguesa: quem não fala bem…
Bom, mas o que inspirou meu texto, que será um dos poucos que abordará gênero, pois vocês viram, eu não tenho distanciamento do objeto para fazer uma investigação acadêmica sobre ele, foi a leitura de um artigo, do psicólogo polonês Slawomir Trusz.
Em “Por que as mulheres escolhem estudar humanidades e ciências sociais enquanto os homens preferem as tecnologias ou ciências exatas?”, o autor propõe-se a entender quais fatores inter e intrapessoais estão envolvidos nessas escolhas. Ele entrevistou 876 estudantes do primeiro ano do ensino superior em diferentes universidades do sudeste da Polônia, uma região bem desenvolvida. Participaram 445 mulheres e 431 homens. A síntese dos resultados: pais e professores tendem a perceber que as meninas são menos competentes para cursos superiores ligados à matemática. Importante: esses cursos, fortemente estruturados a partir de disciplinas matemáticas, são tratados como “cursos masculinos”. (Já ouviram isso em algum lugar?). Ok, não há muita novidade nisso, né? Mas o ponto é: esse tipo de visão, fundamentada por estereótipos de gênero, pode ser internalizada pelos estudantes e, por fim, manter as identidades de gênero fundamentadas por tarefas que podem ou não ser vivenciadas por mulheres/homens. É um ciclo: os formadores (pais e professores) sustentam seu olhar na ideia de que existem profissões mais adequadas para mulheres e outras para homens. Supostamente, a sensibilidade é feminina e as operações matemáticas para homens. E assim que tem de continuar a ser. Por outro lado, nós sabemos que sensibilidade tem muito mais a ver com a possibilidade de se expressar e de se colocar em relação com o outro, enquanto as operações matemáticas podem ser aprimoradas por meio de exercícios. Em suma: precisamos focar no aprendizado e não no gênero daquele que aprende.
Eu escolhi relações públicas, pois eu queria entender mais de gente. Uma das minhas atividades preferidas é sentar e observar gente: como vão, como vêm… As vezes é difícil, mas eu acredito nas pessoas e no seu potencial de romper com estereótipos, pois elas podem aprender. A minha escolha não teve muito a ver com falta de coragem para encarar a engenharia, mas com esse tanto de elementos que sempre me guiaram a ver gente como gente.
Texto consultado: Why do females choose to study humanities or social sciences, while males prefer technology or science? (2020)

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net