
Atividade humana do trabalho. A imersão laboral às tecnologias. Os processos de socialização em diferentes momentos da vida. Para mergulhar em algumas pistas e pensar sobre esse tema, gostaria de considerar 3 fatos com os quais nós, seres desse mundo do século XXI, temos de lidar.
Claro, essa é uma perspectiva que eu fui construindo ao longo do tempo, em mais de 10 anos investigando comportamento humano. Você, por suas diferentes experiências, pode ter uma perspectiva distinta. Mas o que eu gostaria de atentar é aos fatos, em si.
O primeiro fato com o qual precisamos lidar é que nós “cagamos” muito até aqui. Com o perdão pelo uso de um palavrão… A questão aqui é que nós constantemente negamos as fraturas na socialização, em especial, no escopo dos valores humanos. Ainda enfatizamos um sobrenome, uma cor, ou uma teoria, uma prática profissional… são muitas as verdades absolutas que nós aprendemos, culturalmente, a defender…. Entretanto, se queremos avançar na nossa relação com as tecnologias e, talvez, experimentar fatos mais exitosos em termos de socialização, precisamos entender o porquê do que está aí ser insuficiente. Parece-me, então, que esse primeiro ponto nos leva a ponderar que o sistema atual não atende aos problemas atuais. E não falo no sistema educacional, ou político, ou jurídico, mas das nossas práticas particulares. Eu acredito que nós podemos ir além da condição tarefeira, além da realização de uma faculdade para aprender um ofício. Precisamos aprender a olhar para as pessoas que estão mediando a nossa socialização (na família, na escola, no trabalho) e entender o contexto de onde elas vêm. E isso passa por cada um olhar para si mesmo e reconhecer de onde vem, quais saberes carrega e quais se permite construir.
Não podemos, hoje, mencionar a falta de acesso à informação como ponto para nossa tomada de posição. Tanto que, argumentos contrários já emergem: estamos saturados pela informação; somos engolidos pela demanda produtiva e de resultados, e essa infinidade de informações nos confunde e implica a nossa incapacidade de decidir.
Eu acredito que isso tudo seja a ponta do iceberg pela nossa incompetência em relação ao dialogar e ao ser democrático. Para além da ideia civilizatória que, na base, é um conceito colonial, logo de submissão, nós podemos atualizar o sentido original, do “Tornar-se civil ou cortês”, para as necessidades contemporâneas do aprendizado pelas diferenças. A perda da força dos protestos nas ruas coincide com a força das intervenções nos celulares. E em ambos os espaços, nós precisamos questionar e mudar o centro da tecnologia e dos capitais, para o humano. E vejam bem: mudar o centro não significa, de modo algum, eliminar o que era central até então.
Aqui vem o segundo fato com o qual acredito que nós temos de lidar: nós vivemos em um mundo capitalista e isso não vai mudar logo. Mas por que ressaltar isso? Por uma razão que é repetida frequentemente por muitos atores sociais. E eu mesma, já cheguei à sinuca de bico várias vezes: tudo que está errado no mundo é culpa do capitalismo. Trata-se de uma sinuca de bico, pois se chegamos a esse enunciado, chegamos ao fim da linha e temos de escolher entre os dois caminhos: a) aceitar e seguir, pois dói menos ou b) repensar a própria trajetória e reconhecer a própria intervenção nisso tudo, lá no escopo micro, no dia a dia. Se algo que pode ser mudado, é lá. Então, nós precisamos nos esforçar para colocar lentes diferentes, ler os potenciais específicos de tudo que está em nosso entorno e agir localmente a partir disso. Nós estamos falando em educação aqui e nós sabemos que a regulação de emoções demanda tempo, mas é fundamental para nosso processo de ponderação e de diálogos. Precisamos começar agir agora, sem esperar que as repartições públicas e privadas de sociedades fraturadas tomem a iniciativa. A iniciativa precisa ser particular. Nós precisamos estar insatisfeitos com as relações que temos hoje e visar estabelecer outras com quem está no nosso entorno mais próximo. Desse modo, fica claro que nós precisamos de dinheiro e permaneceremos precisando. Mas nossa mentalidade em relação às diferentes formas de capital precisa avançar do assistencialismo à solidariedade. E aqui, vou convidar um pensador que gosto muito, o Eduardo Galeano, que diz algo que parece propício: “Eu não acredito em caridade, eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima pra baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas”. Quando falamos em vertical, falamos novamente do controle. Precisamos amadurecer a compreensão a respeito do controle de modo urgente, enquanto humanidade.
E agora, chegamos ao terceiro fato com o qual nós temos de lidar: o futuro da IA, dos robôs, dos dados… de toda a sofisticação tecnológica depende das nossas apropriações. Apropriar-se mais no sentido de adequar, tornar particular, envolver-se nesse processo e menos no sentido de a tecnologia ser uma propriedade.
Desse modo, acredito que as transformações por meio da tecnologia, em qualquer esfera profissional, passam pela nossa possibilidade de colocar-se na posição de aprendiz em relação a tudo isso que se impõe. Os saberes registrados e edificados até aqui são válidos, pois são a base que vai orientar nossa estratégia de convivência coletiva com os diferentes seres que coabitam o mundo: animais, árvores, plantas, oceanos… computadores, smartphones, robôs… norte, sul, leste, oeste… ciências humanas, sociais, naturais, exatas… direitos, deveres, normas codificadas e ressignificadas… Enfim, esse computo complexo que é nossa realidade social e coletiva.

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net