
Conforme comentamos na semana passada, hoje vamos apresentar nossa segunda reflexão a partir de narrativas sobre o futuro do trabalho. Na primeira abordagem, tratamos do livro Humano + Máquina (2018). Hoje vamos conversar sobre a primeira temporada da série da Amazon, “Upload”. Prometo não trazer spoilers, mas não posso garantir que alguma pista surja. Mas, grosso modo, nossa reflexão não atravessa a história central.
Trata-se de uma série de humor e ficção científica, cuja estória se passa em um futuro não muito distante, mas em 2033. Acredita-se que naquela altura já será possível termos uma vida após a morte. Entretanto, essa vida seria como que uma continuação dessa que conhecemos atualmente. A proposta é que, assim como hoje as pessoas já assinam planos funerários para que tudo esteja resolvido no momento da partida. Na mesma lógica – um plano para cada bolso – nesse caso, o plano pós-vida implica o lugar onde você vai estar pela eternidade (pelo menos nessa temporada não se trata de uma projeção de morte após a morte). Exemplificando: se você tem uma boa condição financeira nessa vida, possivelmente poderá passar sua vida eterna em um lugar bem legal, com vistas naturais paradisíacas, um bufê maravilhoso de comidas e por aí vai. Por outro lado, se você é classe média, possivelmente seu plano de dados pós-vida será limitado e quando ele acabar você fica travado até o próximo mês, quando a assinatura é renovada. Se não pagar, sua memória é apagada e… deu, acabou. Agora, se você é um/a ferrado/a que não consegue pagar nem essa modalidade básica, você não tem a possibilidade de comprar sua imortalidade.
Trouxe esse pano de fundo da narrativa, pois ele deixa claro que nós temos uma visão limitada a respeito do que pode ser uma nova vida. Pense, em 1990, Ghost já explorou alternativas mais criativas de uma visão secular sobre céu e inferno e por aí vai. Transcendence, de 2014, também apresenta uma visão de futuro após a morte mais crível e interessante. Mas em Upload, após acabar, a vida permanece com a mesma lógica de organização social. E vemos isso também refletido no trabalho.
Com aparatos de inteligência artificial, realidade virtual e aumentada, vivos e mortos permanecem mantendo o contato. Há uma organização (uma não, várias) que presta esse serviço, ou seja, há funcionários, pessoas de diferentes áreas – marketing, relacionamento pós-venda, venda, financeiro, e por aí vai.

– e isso faz muito sentido, pois a empresa mantém seus negócios nesse espaço-tempo que nós vivemos e o serviço prestado é o registro das memórias, um upload, e a continuidade desta mesma manifestação orgânica, vamos dizer assim.
Talvez essa seja a explicação para que a projeção de futuro das organizações e do trabalho permaneça verticalizada, com pessoas trabalhando em baias, com carga horária organizada por turnos e cheia de cacarecos hightech.
Vejam: conseguimos criar um mecanismo de manutenção da vida, mas ainda não conseguimos repensar o trabalho e a nossa organização no entorno dele. Preocupante, não acham?
Para sintetizar, três pontos são reforçados em relação ao futuro do trabalho, em 2033.
1) a estrutura verticalizada de trabalho: há uma supervisora que permanece ameaçando as pessoas caso não atendam as metas, ou não façam o que está prescrito;
2) os silos: as pessoas trabalham em baias, cada um com várias telas, teclados, óculos de realidade virtual, luvas que permitem interagir nesse ambiente virtual. No entanto, a cultura da organização, a relação com os colegas de trabalho… bom, essas interações não são prioritárias: o foco é atender ao cliente;
3) a avaliação de competências e desempenho da função “Anjo”: os humanos responsáveis pelo relacionamento com os clientes tem sua nota e, consequente acesso aos benefícios, decorrente da avaliação realizada pelos consumidores, que atribuem estrelas ou corações para cada situação em que o anjo contribui com a resolução de algum problema ou atenção a algum pedido.
O que eu gostaria de chamar a atenção com a proposta de Upload é a forma como nós narramos o futuro. A partir desses três pontos, vemos como é difícil imaginar a vivência do trabalho em uma estrutura física diferente daquela que fundamenta a indústria há pelo menos um século: prédios altos, sem luz natural, poucas janelas, baias e muitos equipamentos para utilizar.

Essas camadas de sentido em relação ao trabalho estão cristalizadas em nossas mentes de uma forma tão intensa que não conseguimos projetar futuros em que ele tenha uma representação diferente. Entretanto, há pelo menos setenta anos já defendemos que essa representação não é suficiente; definimos que ela é desgastante e, por vezes, desconectada das mudanças que precisamos operar para ter um mundo mais justo, com menos desigualdades.
Também fica claro para nós, a partir da proposta de Upload, que o argumento “as tecnologias vêm para que nós possamos fazer o que realmente importa” é, de fato, bastante seletivo. Além disso, diante da estrutura organizacional e das prescrições da atividade, percebemos que as habilidades demandadas nesse futuro projetado em 2033 implicam muito mais as chamadas hard skills (entender como operar as tecnologias) e não as tão populares soft skills, aquelas que, em geral, as pessoas acionam para justificar por que o trabalho realizado por robôs é tão melhor para nós. No entanto, criatividade e colaboração não aparecem de modo evidente entre as habilidades fundamentais para a realização do trabalho. O problema disso? É que assim nós vamos alimentando aquela perspectiva tradicional do trabalho, numa lógica perversa. Assim vamos contribuindo com essa argumentação rasa que já está entre nós há muito tempo. Assim, mantemos nosso sistema social fundamentado na desigualdade.

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net.