
Trabalho, pandemia, estresse, saúde mental. O contexto que envolve essas palavras orienta a nossa reflexão hoje. Ela faz parte de uma sequência de textos que escrevemos para pensar sobre as diferentes representações de trabalho que andam circulando por aí. Nosso foco: narrativas que abordam o futuro do trabalho.
Como projetamos o futuro? Como gostaríamos que nossa organização social acontecesse? Para desbravar essas possibilidades, selecionamos algumas narrativas. Se você tiver alguma outra sugestão, por favor, conte-nos para que possamos também refletir a partir dela!
No primeiro texto, nós tratamos da proposta amplamente divulgada pela consultoria Accenture, mas em especial a partir das ideias desenvolvidas no livro Humano + Máquina (2018). O segundo texto teve como base escolhas complementares à narrativa central da série Upload, da Amazon Prime. Aqui percebemos quão difícil é o desprendimento de uma visão de trabalho baseada nos critérios que nós temos atualmente e que são resultados de anos de cristalização de sentidos e ideias sobre o trabalho e seu entorno. Hoje, gostaríamos de discutir alguns tópicos com base no levantamento encomendado pela Oracle e realizado pela agência Workplace Intelligence. O AI@Work Study 2020 visa entender como a Inteligência Artificial já é percebida pelos trabalhadores no seu dia a dia. Até aí, tudo bem, a proposta parece bem honesta. Entretanto, basta avançarmos um pouco na apresentação dos resultados da sondagem que já percebemos algumas nuances.
Vamos começar do começo. Todo estudo que se prese, acadêmico ou de mercado, precisa explicitar o que pretende, o seu objetivo. Em relação à motivação ou às questões orientadoras – ou aquilo que se queria saber frente a intenção de entender a percepção dos trabalhadores – o relatório apresenta:
Qual o papel desempenhado pelas empresas no que se refere à saúde mental dos trabalhadores?
Quais são os tipos de apoio que os trabalhadores querem?
A Inteligência Artificial e outras tecnologias podem ajudar na abordagem dos desafios relacionados à saúde mental que estamos enfrentando no momento, exatamente como elas se mostraram uma solução para que as pessoas permanecessem conectadas por meio de ambientes de trabalho digitais?
Bom, vamos iniciar a nossa análise por aqui. Todavia, já vamos adiantar que as respostas às duas primeiras questões são perpassadas de modo bem sintético, numa abordagem bem superficial no relatório. Na verdade, o estudo inteiro é bem sintético, especialmente se considerarmos a amplitude das questões orientadoras.
Mas vamos lá! Reparem em um detalhe de ordem visual: você notou uma certa disparidade no jeito de fazer as perguntas? As duas primeiras questões não lhe parecem mais diretas (curtas) enquanto a terceira é bastante extensa?
Bom, só por aí, nós já podemos entender que já uma intenção bem clara com esse relatório/pesquisa (discurso). Agora, observe as questões: Qual delas inclui um argumento? Qual das perguntas expressa claramente uma valoração em relação ao objetivo pretendido? A resposta é fácil, pois a estratégia é explícita: desde a primeira página do relatório já se pode imaginar que argumentação em torno dos benefícios das tecnologias às nossas vidas durante a pandemia será sustentada ao longo da apresentação dos resultados.
Aí você pode dizer: “ah, mas foi uma empresa de tecnologia que encomendou o estudo, claro que a ênfase será essa”. É claro, mas nem tanto. Vamos avançar e retomamos isso em breve.
Diante disso, já percebemos que a representação aqui é clara: realizar o trabalho depende da tecnologia. Ou, de modo mais direto: sem tecnologia não há entregas do trabalho. Ok, de fato, não podemos questionar esse argumento, pois ele é um fato. No entanto, interessa mencionar essa visão parcial do trabalho. Note que esta ênfase às tecnologias fala do meio que viabiliza a entrega dos resultados. Mas, e o processo laboral? Quanto ao processo, percebemos que o argumento apresentado nessa última questão meio que desconsidera esse ponto, pois o enfoque está em mostrar um lado benevolente da tecnologia. Mas vejam, no fim, é a mesma lógica de mercado já conhecida: você cria uma demanda e provém a solução para o problema que você mesmo criou. Assim, para além das denúncias já feitas em todos os espaços onde esse tipo de prática comercial será, não se adicionam problemas. Afinal, nós não precisamos de chocolate por razão nutricional, mas porque criou-se a demanda por algo saboroso e adocicado e nós ajudamos a alimentar esse mercado, que, por sua vez, alimenta outros.
O problema, neste caso da relação entre trabalho e tecnologia, é a criação de uma demanda a partir de um tema muito, muito sério, que é a saúde mental das pessoas no trabalho. Ainda que não se estudasse a saúde mental das pessoas no século XV, por exemplo, podemos supor que o cansaço e a insatisfação diante da ampla demanda de tarefas eram parte da jornada delas. No entanto, inúmeros aspectos podem justificar a pouca importância dada a vida desses trabalhadores até o início da primeira Revolução Industrial, quando a concepção de trabalho passa a ser desenvolvida. Por exemplo, nas sociedades tribais ou pré-econômicas, a organização social era baseada nas posições que as pessoas ocupavam por sua profissão. A profissão, por sua vez, era determinada pela importância familiar/ financeira do indivíduo em determinada comunidade. Assim, o trabalho de camponeses, escravos, ou qualquer outra manifestação considerada “bruta”, não era digna de preocupação ou de reflexão. Entretanto, no caso das pessoas dos altos escalões sociais, registrar a experiência da melancolia por meio de pinturas, esculturas ou outras manifestações artísticas era viável. Desse modo, a contar dos registros, a saúde do trabalhador só começou a ser considerada tópico importante aos assuntos organizacionais nos anos 1970. E essa importância se dá pela necessidade de manter o indivíduo em performance excelente, com poucas paradas e muitos resultados.
Ufa! Acredito que o primeiro ponto da nossa reflexão pode ser concluído por aqui. Como o texto já está ficando longo por demais e você, leitor/a querido/a, deve estar cansado, vou desenvolver apenas mais duas ideias fundamentais que seleciono a partir da leitura do relatório. Meus critérios para essa seleção? Tentar ser sintética, escolhendo o que resume os dois argumentos centrais do texto:
1) a crise sanitária da Covid-19 é geradora de grandes impactos à saúde mental dos trabalhadores;
2) a tecnologia é a melhor estratégia para abordar esse problema.
Você pode estar se perguntando: mas a questão da importância da empresa nessa parte, conforme as duas primeiras perguntas? Então, querido/as! De acordo com o relatório, o papel delas é adquirir mais soluções tecnológicas.
E você, como tem sido lidar com todos os aparatos tecnológicos demandados por empregadores, familiares, clientes… nesse período de pandemia?

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net.