Coffee and Work

Escrever esse texto, conduziu-me a uma viagem no tempo. Lembrei das minhas aulas na Faculdade de Relações Públicas, na primeira década dos anos 2000. O tema das organizações, especialmente a construção da imagem, sempre foi minha principal paixão. Imagem e cultura são temas muito próximos, ainda que nem sempre sejam tratados em conexão.

Naquela época, lembro de ouvir as professoras mencionando que esse tema da cultura já era saturado e que não havia muito a desenvolver. Eu particularmente sempre discordei dessa opinião. Quanto eu conheci a CCO – Constituição Comunicativa das Organizações – tive certeza de que nós apenas estudamos o topo do iceberg para tratar do tema da cultura e que há uma imensidão a ser desenvolvida.

Por que começo esse texto dizendo isso?

Porque há uma ruptura drástica no modo de estudar e praticar a comunicação quando partimos do paradigma da transmissão para o da constituição. E nós estamos acostumados a pensar e entender a cultura enquanto transmissão: há um certo modo de operar no contexto – do setor, da organização – e nós precisamos caber e nos adaptar. Isso não está errado, mas é muito limitado.

Por um lado, nós ignoramos que a nossa presença naquele contexto, desde o primeiro segundo, já altera o cotidiano daquela cultura. Sabe por quê? O comportamento das pessoas em relação à gente passa a existir. Nossa presença emite uma série de mensagens, que são percebidas, interpretadas e instigam a construção de respostas por parte do nosso interlocutor. E isso altera a cultura.

Por outro lado, estamos habituados a entender a cultura como algo fixo e muito difícil de ser mudado. De fato, a cultura reúne significados cristalizados durante o tempo. Mas como o cristal, ela é lapidada e vai adquirindo novas formas de expressão.

Ainda hoje, nas escolas de negócios ao redor do mundo, proliferam-se as noções de cultura propostas por Edgar Shein e Geert Hofstade. Trata-se de perspectivas muito eficientes e didáticas ao estudo da cultura, pois elas enfatizam a sua dimensão estável e, partir dela, promovem classificações sobre estilos de culturas. Entretanto, elas dão conta de uma dinâmica organizacional como aquelas almejadas a partir da digitalização? Ou dos movimentos da globalização mais recentes? Eu tenho a sensação de que os comportamentos tão fissurados pelas tradições expressam nosso medo ao lidar com conceitos mais líquidos – como diria Bauman – e tão presentes no mundo mediado por sofisticada tecnologia.

Nós pensamos que é ok ter inúmeros dispositivos que capturam cada detalhe da nossa vida cotidiana, mas que não é possível transpor a barreiras da cultura, pois elas são fixas ou determinadas por algumas pessoas?

Estudos vinculados às chamadas escolas pós-modernas – como Karl Weick, por exemplo – já defendem uma mudança na nossa forma de olhar para a cultura: para além de expectadores, somos edificadores dessa cultura. Nada na construção das organizações é orgânico ou natural, mas resultado de inúmeras negociações de significado que vamos fazendo, ou seja: artificial, resultado da criação humana. A noção de sensemaking proposta por Weick é uma das sementes que fez com que os estudos organizacionais passassem a admitir a comunicação de uma maneira constitutiva – claro que há outros elementos, nós falamos isso em nosso ciclo de estudos.        

Essa introdução ficou um pouco teórica, mas não há como avançarmos na compreensão da cultura enquanto construção coletiva – com a participação de cada um de nós, ao aderir ou não às normas apresentadas e como fazemos essa adesão.

Assim, considerando a nossa pesquisa lá em nosso canal do Instagram, cujo resultado aponta para a compreensão de que os gestores determinam a cultura da organização (para 50% dos participantes, sim, o/as gestore/a(s) definem a cultura. Para 50%, não, eles/as não definem).

Por certo, vamos entrar num terreno de contestação. Se você é seguidor das perspectivas do Shein ou do Hofstade, você provavelmente pensa que a gestão é definidora de tudo na organização e que ao realizar seu trabalho, você está apenas seguindo as normas postas por eles. Já, se você – como eu – é seguidor das perspectivas pós-modernas, como a de Weick, possivelmente você entende que ainda que muitas determinações – normas – escritas e não escritas (tácitas) façam parte do cotidiano organizacional, por vezes a prática cotidiana opõe essas regras e vai, aos poucos fazendo emergir outras regras, para além daquelas que são impostas. Por certo, pode-se argumentar que essas práticas não previstas só se tornam normas quando a gestão as sanciona. Entretanto, essa perspectiva tende a apagar a participação dos indivíduos e estabelece um contrassenso se pensarmos que a norma é ter funcionários que são ativos no cotidiano organizacional. Você percebe? Ainda que seja uma sutil mudança de percepção, culmina com uma intensa manifestação do modo como percebemos o outro e como entendemos nossas interações com esse outro.

 

A partir dessas considerações, nós podemos avançar a uma definição do que é a cultura da organização com base nas respostas lá da nossa enquete do Instagram. Para nossos colaboradores lá na pesquisa, cultura é a essência da organização. Eu sempre acho muito interessante essa visão.

 

A primeira pergunta que vem a mente, então, é: o que é essência?

 

De acordo com o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa: 1. O que constitui o ser e a natureza das coisas. 2. Qualidade predominante ou virtual de (plantas e drogas). 3. O que há de mais puro e sutil (nos corpos). 4. Ser; existência. 5. Óleo essencial ou volátil. 6.  Caráter distintivo. 7. Ideia principal.

 

Bom, aqui, novamente entramos no terreno da contestação e a resposta vai depender muito da linha filosófica à qual você se filia. Vou falar da perspectiva que eu aprendi a construir – e que faz muito sentido para mim. Em um mundo como o nosso, onde praticamente tudo foi criado por nós ao longo do tempo, é difícil falar em natureza das coisas. O aquecimento global, por exemplo, é resultado da nossa intervenção com meios de produção e consumo. Atualmente, quando uma mulher se prepara para a concepção de um bebê, vai ao médico e toma uma série de vitaminas para ter uma gravidez mais saudável. Em breve, já se fala na possibilidade de manipulação genética par evitar problemas de saúde antes mesmo de o bebê nascer. Enfim, deu para perceber que de natural, pouco se tem. Quando falamos de cultura, essa concepção natural parece ainda mais descolada do real. Se entendemos que nosso acesso ao mundo social decorre na nossa socialização nesse junto a esse mundo e que ela só acontece porque compartilhamos significados, que, por fim, são atribuídos aos objetos para que possamos manipulá-los, neste caso, entender a cultura como essência não encontra justificativa. Logo, não é algo que se dá organicamente, mas decorre das inúmeras interações que se estabelecem no cotidiano. Por isso nós entendemos a ideia ergológica de experiência de normas como basilar ao estudo da cultura das organizações.

Mas o que quer dizer experiência de normas?

De modo breve: trata da nossa atividade (de trabalho, de lazer, familiar …) de visualizar que há uma série de normas antecedentes e prescritas, mas que nós mesmos trazemos uma bagagem de normas aprendidas ao longo das nossas experiências em atividade. Nesse caso, quando estamos fazendo algo, nós nunca fazemos apenas no modo que foi prescrito, mas nós mobilizamos as nossas próprias normas particulares para interpretar e responder às prescrições. Esse processo interpretativo é orientado por uma série de valores, que nós mesmos definimos. É porque somos seres culturais – resultado, mas interveniente às práticas culturais – que valorizamos mais alguns pontos do que outros. Essa valorização, ou avaliação, representa a experiência de normas que culmina com a nossa ação e abre brecha para uma série de outras participações daqueles que estão participando do contexto organizacional.

 

Bom, nós entendemos a cultura como esse movimento constante, que conta com a participação de cada um de nós ao realizar uma atividade. Por certo que tudo é mais complexo quando se pensa assim. Por um lado, porque nossa mente pode estar orientada a pensar de outro modo, assim como as diferentes instituições e tradições que fazem parte do nosso cotidiano. Por outro lado, porque essa perspectiva é ainda muito recente e carece de muita investigação.

 

Essa é a nossa missão por aqui!

E você, o que pensa sobre esses pontos todos? Como a sua perspectiva acerca da cultura nas organizações participa nesta discussão?

Gislene Feiten Haubrich é Doutora e Mestre em Processos e Manifestações Culturais. Dedica suas investigações aos estudos comunicacionais no contexto das organizações sob os enfoques da Ergologia, das teorias Bakhtiniana e Discursiva. Fale com: gislene@coffeeandwork.net